terça-feira, 11 de março de 2008
Na esquina do surrealismo com o groove
Por Ramiro Zwetsch
Ilustração: Carlinhos Muller
A previsibilidade nunca acompanhou mesmo Tim Maia: o descompromisso com a agenda de shows, os resmungos grosseiros endereçados aos técnicos de som e a simpatia pelas drogas fizeram dele um artista excêntrico desde sempre. Mas entre 1974 e 1976, a bizarrice foi além. O primeiro indicativo de que algo estranho estava para acontecer surgiu com a notícia de que o cantor havia largado os vícios, todos eles. Tim Maia estava limpo e isso já era suficientemente intrigante. Mais espantosa seria a razão da abstinência anunciada: o cantor havia mergulhado na Cultura Racional, espécie de seita que mistura umbanda e a crença em extraterrestres para decifrar a origem e o destino da existência humana. Tudo com base em ensinamentos do livro "Universo em Desencanto".
Fanático, o compositor passou a vestir-se só de branco (e exigiu que todos seus músicos fizessem o mesmo e, pior, pintassem seus instrumentos com a mesma cor), dedicou dois dos álbuns mais inspirados de sua discografia à causa – "Tim Maia Racional Vol. 1" (1975) e "Tim Maia Racional Vol. 2" – e foi às ruas para vender os discos em semáforos do Rio de Janeiro. Ainda em 1976, outra reviravolta: o músico se desencantou com a seita, vociferou aos quatro cantos que aquilo tudo não passava de trambique e renegou os álbuns, jamais reeditados em CD. Raríssimos, os LPs originais podem custar até R$ 500 atualmente.
O primeiro volume da dobradinha completa 30 anos em 2005 e o aniversário chega junto com o interesse de David Byrne em lançar os dois álbuns em CD, pela sua gravadora Luaka Bob. “O contato aconteceu no ano passado, por intermédio do Ed Motta. Não sei os detalhes, meus advogados estão tratando disso. Mas ainda não decidimos se vamos autorizar, vai depender do ‘faz-me rir’”, conta Carmelo Maia (filho de Tim e herdeiro do espólido do artista), referindo-se aos valores envolvidos na conversa. “'Tim Maia Racional' é uma jóia, não posso liberar de graça para o David Byrne.” Carmelo também anuncia que quer lançar finalmente os dois álbuns em CD em 2005. “Só depende de uma definição da gravadora que vai distribuir.”
À margem da discussão religiosa, "Tim Maia Racional" é objeto de culto entre DJs e músicos da nova geração. Músicas dessa fase foram regravadas recentemente por nomes dos mais diversos – desde a apresentadora Babi, em sua isolada incursão pela música, até Gal Costa, Davi Moraes e Monobloco – e suas bases já foram recicladas por Marcelo D2 e Rappin Hood. Além disso Sandra de Sá, Toni Garrido e Zé Ricardo encabeçam o projeto "Música Preta Brasileira", que promoveu shows focados no “repertório racional”. “É uma fase de puro soul do Tim, despreocupada com a visão mercadológica. Sou apaixonado por esses discos”, derrete-se Zé Ricardo, que gravou "Bom Senso", uma das faixas do período, em seu terceiro e recém-lançado disco, "Zé Ricardo Ao Vivo".
Musicalmente, a sonoridade do soul de Tim Maia deu um salto. O grave de sua voz bate no ouvido aveludado como nunca e a cozinha instrumental encontra aromas surpreendentes com a mão certa na combinação de temperos. "Que Legal" requenta os ritmos caribenhos com percussão picante e teclados inspirados na melhor malandragem cubana. A guitarra movida pelo pedal wah wah conduz "O Caminho do Bem" – incluída na trilha sonora de "Cidade de Deus" – rumo ao funk em ritmo maroto, à moda da manemolência brasileira. Os sopros pontuam "Imunização Racional", um soul refogado com condimentos latinos. E "Rational Culture" dobra qualquer paladar com uma suculenta linha de baixo, pitadas de um tecladinho sacana e um refrão profético: “we’re gonna rule the world, don’t you know?/ don’t you know?” (“nós vamos dominar o mundo/ você não sabe? você não sabe?”).
Para o escritor Nelson Motta, que chegou a freqüentar alguns cultos com Tim Maia, o diferencial da fase racional está no vozeirão. “A pureza de sua voz e a potência de seus pulmões (sem maconha, cocaína e álcool) dá uma qualidade única aos LPs. Sua voz nunca esteve tão boa, tão limpa e tão forte”, diz. “Bem, os discos também são atraentes porque não existem. Tudo que circula é pirata. Tim odiava os discos e nunca autorizou a edição em CD.”
Dono da loja de discos Phono 70 (na Galeria do Rock) e colecionador de LPs da música negra brasileira, Rodrigo Piza chama atenção para outra particularidade. “Foi naqueles álbuns que o Tim Maia começou a sair do soul e entrar no funk – na minha opinião, com uma sonoridade totalmente inspirada em Isley Brothers. Apesar da piração, é a fase que ele abre experimentações com mais teclados, arranjos mais ousados. Vai além da fusão de soul com baião.” Já o compositor Marcelo Yuka, ex-O Rappa e atual líder do grupo F.U.R.T.O, acrescenta uma terceira impressão sobre o culto em torno dos álbuns. “Por tratar de um universo religioso, os discos tem muita alma – como acontece com alguns discos de Bob Marley. Por mais equivocada que seja a ideologia, sinto um envolvimento espiritual sincero quando ouço os LPs."
*Esse texto foi publicado originalmente pelo Jornal da Tarde e reproduzido pelo Estado de São Paulo. Na ocasião da edição original, o texto trazia a informação incorreta de que quem estaria interessado nos dois álbuns da fase racional seria David Bowie, em vez de David Byrne. A confusão foi feita por Carmelo Maia, que trocou os nomes e repetiu "Bowie" todas as vezes que o repórter insistiu em conferir a informação
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