sexta-feira, 13 de março de 2009

Direto do site da Trama

Abra a porta e vá entrando...
Tudo é possível quando música e crença se encontram. Do batuque de terreiro ao canto gregoriano ou à celebração gospel, todo louvor cabe em melodias e todo ritmo se presta à devoção. Foi iluminado por Jah que Bob Marley tornou-se rastafári, fazendo do reggae a trilhasonora de uma fé que, não fosse por ele, seria praticada por bem menos gente. Tim Maia também teve sua incursão transcendental. Guiado por um “ser superior”, o “verdadeiro Deus”, como ele mesmo afirmava, Tim virou porta-voz da Cultura Racional. Sua fase mística, de 1974 a 1976, foi intensa e prolífica, mas acabou renegada com tamanho ímpeto que permaneceu por décadas sob o manto do mistério.

Felizmente, o espólio artístico daquele período sobreviveu. E o primeiro dos dois volumes assinados por Tim Maia Racional agora sai das sombras. Além do interesse que toda raridade suscita, esta é uma relíquia que pede para ser decifrada sob o signo de sua própria gênese. Uma das reputações que melhor definem a lenda de Sebastião Rodrigues Maia (1942-1998) é a de ele sempre ter mergulhado de cabeça naquilo em que acreditava. Quando aderiu à Cultura Racional, foi com o fervor típico de quem descobre “o caminho”. Como fazem os discípulos mais aplicados, Tim se dedicou de corpo e alma à nova crença: abandonou antigos hábitos, rasgou contratos que garantiam sua sobrevivência, forçou os músicos que o acompanhavam a comungar da mesma crença e, acima de tudo, pôs sua imagem e fama a serviço daquilo que se tornou sua razão de viver. Definindo a Cultura Racional como “um raciocínio superior a todos os raciocínios”, ele a defendia como sendo “a verdadeira luz da humanidade”. Tim Maia virou Racional por intermédio de Tibério Gaspar, compositor de BR-3 e Samarina. Lendo o livro Universo em Desencanto, ele se converteu a algo que é difícil de definir. Por isso mesmo, Tim preferia dizer o que a Cultura Racional não é: “Não é religião, não é seita, não é doutrina, não é ciência, não é filosofia, não é espiritismo. É um conhecimento vindo do nosso verdadeiro mundo de origem. Não é extraído de nenhuma mente humana”.

Comprovando sua excepcional musicalidade, Tim compôs maravilhas a partir do “imusicável”. Nem mesmo o criador da Cultural Racional, Manoel Jacintho Coelho (1903-1991), elevado por Tim ao posto de “maior homem do mundo”, poderia sonhar com um seguidor tão talentoso, capaz de transformar proselitismo em músicas formidáveis.

Convencido do “dever de fazer propaganda desse conhecimento” (nome que deu a uma de suas canções, lançada no volume 2), Tim Maia não se limitou a criar jingles fáceis. Embalou as palavras ditadas pelo Racional Superior em um som de arrasar, contando para isso com uma banda enxuta e polivalente. Nas gravações, Tim tocou baixo, bateria, percussão e flauta transversal.

Serginho Trombone assumiu o piano em uma das faixas. Além deles, tocaram Robson Jorge (órgão elétrico, piano, teclado), Paulinho Guitarra (guitarra, baixo, violão), Beto Cajueiro (baixo), Paulinho Trompete (trompete), Oberdan Magalhães (sax) e dois bateristas, Robério Rafael (que foi da banda Brylho) e Luiz Carlos Batera (ex-Banda Black Rio). O resultado evoca uma superprodução, com arranjos complexos e produção de primeira. Mas não foi bem assim. Tim arranjou tudo, com a colaboração de sua banda. E ele próprio produziu os discos, gravados em um estúdio sem grandes recursos. Ainda que tenha se desencantado rapidamente e passado o resto da vida evitando comentar sua fase racional, Tim Maia teve nela um de seus grandes momentos como artista. A prova, indiscutível, é este CD.

Para recuperá-lo do esquecimento, foi preciso um trabalho arqueológico: o master usado na atual versão é uma cópia restaurada a partir de um LP, já que não há vestígio algum daquelas gravações originais, exceto as poucas cópias prensadas que ainda restam, quase sempre castigadas pelo uso.

Como que perpetuando a aura mítica da obra racional, a Trama incluiu no mesmo álbum duas versões: uma remasterizada, outra com o som do vinil. O que pode parecer preciosismo é na verdade um sinal de respeito a esse tesouro da música brasileira. Ouça e comprove. Ou melhor: abra a porta e vá entrando...

Celso Masson

fonte: http://trama.uol.com.br/portalv2/album/index.jsp?id=4774